sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Diário de uma criança que não nasceu

Alberto Deodato
Jornal “Estado de Minas” – Terça-feira, 14 de setembro de 1971

Recebo uma carta anônima. Letra feminina. Muita amabilidade. No envelope, recorte de jornal meio velho. Que jornal, não diz. Mas a página enviada é de comovente leitura. Belo e trágico. Ninguém a subscreve. Tem o seguinte título: “Diário de uma criança que não nasceu”. É o diário de um feto, desde o primeiro dia de sua formação no ventre materno. Deve ter sido escrito por um médico. Ginecologista. Mas dono de uma imaginação fantástica. Digo que o escritor é médico, porque colega seu, a quem mostrei a página, me assegura que a evolução intra-uterina é narrada no “diário”. Vou transcrever esse “diário” original, tal qual está escrito. No seu pitoresco e na sua dramaticidade final.

15 de outubro – Hoje, teve início a minha vida. Papai e mamãe não sabem. Sou menor que a cabeça de um alfinete. Todas as minhas características físicas e psíquicas estão já determinadas. Terei os olhos do papai, os cabelos ondulados da mamãe. E sou uma menina.

19 de outubro – Hoje, começa a abertura de minha boca. Dentro de um ano, poderei sorrir quando os meus pais se inclinarem sobre o meu berço. A minha primeira palavra será “mamãe”.

25 de outubro – O meu coração começou a bater. Ele continuará a sua função sem parar, sem descansar, até o fim da vida. De fato, é isto um grande milagre.

02 de novembro – Os meus braços e as minhas mãos começaram a crescer. E continuarão a crescer até ficarem perfeitos e fortes para o trabalho. Isso requererá algum tempo, mesmo depois do meu nascimento.

12 de novembro – Hoje, pela primeira vez, minha mãe percebeu, pelo seu coração, que me traz no seu seio. Quem sabe a sua grande alegria!

28 de novembro – Todos os meus órgãos estão completamente formados. Eu estou muito grande.

12 de dezembro – Crescem-me os cabelos e as sobrancelhas. Oh! Como ficará contente minha mãe com a sua filhinha!

13 de dezembro – Logo poderei ver. Porém os meus olhos estão costurados por um fio. Luz, cor, flores. Como deve ser magnífico! Sobretudo enche-me de alegria o pensamento de que eu deverei ver minha mãe. Seria melhor se não tivesse de esperar tanto tempo. Ainda mais seis meses...

24 de dezembro – O meu coração está pronto. Deve haver crianças que nascem com o coração defeituoso. Neste caso precisam se sujeitar a delicadas intervenções para corrigir os defeitos. Graças a Deus, o meu coração não tem anomalia alguma e eu seria uma menina cheia de vida e força. Todos ficarão alegres com o meu nascimento.

28 de dezembro – Hoje minha mãe me assassinou.

Fragmento de jornal armazenado e
transcrito por Maria Aparecia Campos.